Greve dos caminhões detona guerra entre tubaínas e Coca-Cola
Pequenas fabricantes de refrigerantes acusam Coca-Cola e Ambev de concorrência desigual e apoiam decreto de Temer que muda cobrança do IPI.
São Paulo – De um lado, pequenas marcas locais de refrigerantes. Do outro, grandes companhias como Coca-Cola e Ambev. É esse o cenário de uma briga antiga do setor de bebidas, que ganhou vida nova recentemente.
A mudança proposta em um decreto do governo é a seguinte: o xarope de refrigerante passará a pagar uma alíquota de 4% de IPI, contra os 20% que eram cobrados anteriormente. Aparentemente, portanto, é uma redução no imposto. Leia mais: Greve dos caminhoneiros deflagra guerra dos lobbies por por benefício fiscal
Porém, muitas companhias do setor, em especial as grandes, produzem esse xarope na Zona Franca de Manaus, com isenção de tributos. Então, os 20% de IPI que seriam cobrados dessas companhias na verdade tornam-se créditos para elas.
A empresa não paga os 20% porque está na Zona Franca de Manaus. Mas na hora que o xarope sai de Manaus para as engarrafadoras que estão em outros Estados, elas ganham um crédito de 20%. Com a nova regra proposta pelo governo, o desconto passa a ser de 4%.
“Fica impossível empreender no setor de bebidas no Brasil e abrir uma concorrência leal”, afirma Fernando Bairros, presidente da Afrebras (Associação dos Fabricantes de Refrigerantes do Brasil).
A associação representa pelo menos 132 companhias de refrigerantes, dentre elas o Guaranita Cibal, de Passa Quatro (MG), o Devito, de Catanduva (SP), e o Guaraná Pureza, de Riacho Queimado (SC), no mercado há 113 anos.
Segundo a entidade, além do crédito recebido, as grandes companhias superfaturam o produto que sai da Zona Franca, aumentando ainda mais a distorção. Material divulgado pela Afrebras afirma que o preço do concentrado produzido em Manaus “chega a ser 20 vezes maior que o insumo produzido nos demais estados”.
A lógica, segundo a Afrebras, é aumentar artificialmente o preço para assim ganhar mais nos créditos de IPI. A renúncia fiscal das multinacionais de concentrado localizadas na Zona Franca de Manaus foi de 9,1 bilhões de reais em 2016, diz a entidade.
Isso tem levado à morte de diversas pequenas fabricantes de refrigerantes, afirma Bairros. Em 1960 eram 892 empresas no setor; em 2015 ficaram 235, diz. Para as que sobrevivem, a consequência é a dificuldade de crescer. “Os pequenos acabam ficando restritos a seus próprios Estados, para economizar na distribuição. Muitos também não conseguem usar embalagens de vidro, que são ecológicas, mas mais caras”, afirma.
14 mil postos de trabalho
Do outro lado dessa briga está a Abir (Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e Bebidas Não Alcoólicas), entidade que reúne 59 fabricantes, dentre elas Coca-Cola, Pepsi e Ambev.
A associação diz que representa tanto grandes quanto pequenas fabricantes ,e defende que sua presença na Zona Franca de Manaus movimenta a economia local. Segundo ela, há hoje 31 fabricantes de concentrados na região, responsáveis por 14 mil postos de trabalho. A entidade diz ainda que o “regime de compensações tributárias da Zona Franca de Manaus, reconhecidamente bem sucedido como modelo de desenvolvimento regional, está disponível para empresas de todos os portes”. Segundo a associação, 90% do concentrado utilizado pelas indústrias brasileiras de refrigerantes vem da região.
Questionada sobre a acusação de superfaturamento dos xaropes, a associação afirmou que “não há prática desigual nem qualquer concorrência desleal” por parte de suas associadas.
A Abir tem pressionado o governo para reverter a decisão sobre o IPI e ameaça cortar os 14 mil empregos que gera na região amazônica. Segundo os fabricantes, com o decreto, há aumento de 8% nos preços dos refrigerantes para os consumidores, o que provocará recuo de 15% nas vendas, com queda de R$ 6 bilhões de faturamento e R$ 1,7 bilhão na arrecadação de impostos. Segundo a Abir, a mudança na tributação inviabiliza a presença da indústria em Manaus.
Na visão da Afrebras, o problema não está nos incentivos para atividade econômica na Zona Franca de Manaus, mas no fato de essas empresas fabricarem o xarope por lá. “Criou-se essa figura do xarope de refrigerante, que na verdade tornou a matéria-prima para o produto final. A Zona Franca de Manaus deveria ter apenas empresas de produtos finais”, diz Bairros. O correto para uma concorrência saudável, na visão da Afrebras, seria que cada fabricante fizesse o seu concentrado internamente.
O tema será debatido hoje em audiência pública em Brasília. O governo espera arrecadar 740 milhões de reais com a mudança somente este ano. Para o ano que vem, a expectativa é de um incremento de 1,9 bilhão de reais na arrecadação.
Vale registrar que a Afrebras assinou recentemente um acordo com o Cade(Conselho Administrativo de Defesa Econômica), onde responde a um processo por práticas anticompetitivas. A suspeita é de combinação de preços entre os integrantes da associação. Em nota, a entidade afirma que não infringe normas de proteção e defesa da concorrência.
Refrigerante e filé mignon
Essa não é uma briga nova. Em março deste ano, o Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) julgou procedente um pedido da Fazenda Nacional sobre o caso.
Uma nota no site da Receita Federal afirma o seguinte: “(…) a prática que vem sendo adotada por grandes empresas do setor é a de se aproveitarem de benefícios fiscais oriundos de insumos de baixo valor agregado. Dentre os insumos que geram créditos os para fabricantes de bebidas, incluem-se até mesmo substâncias que são adquiridas no centro do país e passam por simples reacondicionamento em Manaus”.
Também não é primeira vez que o governo tenta mexer no IPI do xarope de refrigerante, que já foi alvo da então presidente Dilma Rousseff, em 2013.
O cabo de guerra das empresas de refrigerantes aparece em um momento de forte tensão para o governo, que desde a greve dos caminhoneiros busca conciliar interesses de diversos setores da economia.
Além do desconto de R$ 0,46 no preço do diesel, o governo também prometeu aos caminhoneiros criar uma tabela do frete. Só que a medida é considerada nociva pelo Cade. Segundo documento enviado pelo órgão ao STF (Superior Tribunal Federal), a tabela cria uma espécie de cartel, tem graves efeitos ao consumidor, prejudica o mercado e representa uma afronta à livre concorrência. Os caminhoneiros ameaçam parar o país novamente caso a reivindicação não seja atendida.
A celeuma expõe ainda um problema antigo, que é o dos benefícios fiscais. Só em 2018 a União vai abrir mão de R$ 283,4 bilhões por causa de benefícios fiscais. Na lista dos produtos agraciados com um desconto nos impostos estão itens como salmão, caviar, filé mignon e todos os tipos de queijo. Alguém, certamente, está pagando essa conta.